Por Rui Gil
No terceiro dia da invasão russa da Ucrânia, um casal ucraniano com dois filhos sai de sua casa, pega no que pode e mete-se no carro em direção à fronteira com a Polónia. O marido leva as malas e um dos filhos, de 3 a 15 anos, até onde podia, despede-se deixando a mulher e os filhos em lugar seguro, olha para trás e, no meio da incerteza, balbucia um “até já”. A lei marcial obriga-o a ficar no País, regressando, assim, à sua residência.
A jovem de 25 anos, agora sozinha com os seus filhos, apercebe-se de que nem o carrinho para o bebé havia levado, vendo-se agora obrigada a carregar uma criança e a levar outra pela mão. Apesar do esforço, é nestes momentos que percebemos que os bens físicos são secundários, e ela deixou a bagagem pelo caminho porque não conseguia carregar os filhos e o mais. Passou uma semana na Polónia à espera de um voo para Portugal, onde hoje se encontra junto de uma família de acolhimento.
Fugiu porque queria salvar os seus filhos do perigo e trauma da guerra. Todos os dias o seu filho mais velho, ainda de tenra idade, faz uma chamada para o pai e logo pergunta “se faz sol na Ucrânia?” No País, o intento único é a Paz, sendo habitual o desejo entre a comunidade por um “Céu Claro”. Na mente de uma inocente criança dá-se a conclusão genuína de que não há nuvens no céu a encobrir o sol. Pois bem: o desejo de um céu claro refere-se a uma atrocidade que ocorre todos os dias na Ucrânia durante a noite, quando os mísseis cobrem os céus como estrelas e caiem no chão como água da chuva. Sem escolher alvo, atingem bairros residenciais, hospitais e escolas, trazendo por vezes mensagens atrozes escritas em russo, como foi o caso do míssil que caiu na estação de comboios de Kramatorsk com mensagem que dizia “para as crianças”.
Nascida em Ternopil, na zona ocidental da Ucrânia, em 1984, mudou-se quando tinha 23 anos para a cidade de Kiev, onde foi membro integrante do Rotaract Clube desta cidade. Com 24 anos, numa visita a Portugal, conheceu o seu futuro marido (igualmente de nacionalidade ucraniana), e, à semelhança dos sentimentos que foi desenvolvendo por ele, apaixonou-se igualmente por Portugal. O clima, os sítios e as suas gentes conquistaram o coração de Iryna, que partilha connosco que o povo português e o ucraniano estão cheios de semelhanças.
Por outro lado, as pequenas diferenças existentes apenas nos enriquecem. Vive em Portugal há cerca de 13 anos, onde é feliz e constituiu família. Os seus pais continuam a viver na Ucrânia, mas todos os verões visitam Portugal. Atualmente, trabalha na área da economia e das relações internacionais como professora na Atlantic International University e como tradutora, competências profissionais que lhe permitiram superar barreiras linguísticas dada a sua fluência no português, inglês, ucraniano e russo. Conta já com algum trabalho de tradução realizado para meios de comunicação social, nomeadamente a SIC, sobre o atual conflito.
As imagens da 2ª Guerra Mundial ainda estão muito presentes na memória do povo ucraniano. Hoje, avôs de família partilham o modo como em 1945 estiveram presentes na tomada de Berlim e como hastearam a bandeira soviética sobre o Palácio do Reichtag (parlamento Alemão), momento simbólico da queda de um regime autocrático sem escrúpulos, antissemita, que divulgava a propaganda e praticava o ódio, culpado de atrocidades contra a humanidade. Como nos diz Karl Marx na sua obra “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” (obra de 1852 que se reporta ao segundo mês do calendário da Primeira República Francesa), e chega à conclusão de Georf Wilhelm Friedrich Hegel de que a história se repete, Marx especifica os termos em que acontece a primeira como tragédia, a segunda como farsa.
Apesar de, como outros ucranianos, Iryna ouvir as histórias da 2ª Guerra Mundial do seu avô, não obstante os ventos de guerra que se anunciavam, fatos de concentração de efetivos militares e missões militares conjuntas que se efetuavam, nenhum ucraniano acreditava na possibilidade de uma guerra.
Sempre consideraram os russos como seus irmãos, de igual forma como acontece na Península Ibérica entre portugueses e espanhóis nuestros hermanos.
Foi no dia 24 que Iryna recebeu um telefonema do seu sogro às 6h da manhã, e, ainda sonolenta, ouve as palavras “a guerra começou”. Os seus pais não lhe quiseram telefonar por saberem que ainda era de madrugada em Portugal; de igual forma também não sabiam como transmitir um facto tão atroz. Iryna entrou em choque não conseguindo aceitar o que estava a acontecer. Observava as imagens e lia as notícias mostrando–se incrédula para com a situação.
De coração nas mãos, pensa em todos os momentos na sua família e no seu país, consciente de que a pior altura e o momento de maior dano são os bombardeamentos noturnos. O pôr-do-sol traz consigo o momento de maior ansiedade e de insónias; por sua vez, o nascer-do-sol traz consigo um sentimento de angústia e desconsolo, com a revelação dos danos provocados durante a noite. O irmão do seu marido encontra-se na frente de guerra e Iryna partilhou connosco testemunhos que nos deixaram tão inconsolados que não somos capazes de relatar.
Como tem defendido ao longo dos seus mandatos, António Guterres (secretário-geral da Organização das Nações Unidas) Hoje as guerras não têm vencedores a perda de vidas humanas e o rasto de destruição são inaceitáveis e incompreensíveis em pleno século XXI.
Após o choque do primeiro dia de guerra, Iryna sentiu-se determinada em arregaçar as mangas e agir, compreendendo que não podia continuar no estado de inércia como uma simples observadora. A sua primeira abordagem foi de intermediária na partilha de notícias sobre a situação da Ucrânia pelas redes sociais, servindo como um agente de informação, uma ponte entre os dois países. Porém, no segundo dia do conflito procurou desde logo formas de poder enviar bens essenciais para a Ucrânia, começando pela Associação Centro de Apoio à Ucrânia. Associaram-se a uma empresa de logística em Mem Martins que, frente à situação, também procurou iniciar uma campanha de envio de bens para a Ucrânia. Uma pequena ação de apoio transformou-se numa operação de ajuda humanitária de grandes dimensões. A mesma já contou com o apoio de vários clubes rotários, e uma grande quantidade de bens já chegou aos centros de apoio montados na fronteira da Polónia, bem como a algumas cidades do ocidente.
Iryna mostrou-nos que, sem pensar duas vezes, começou a planear e agir para atingir o objetivo de salvar vidas. O trabalho e esforços conjuntos são prova de que conseguimos concretizar ações que outrora pensávamos impossíveis.
A mais pequena ação ou ajuda tem o poder de impactar uma vida e transformar mentalidades. Por exemplo, quando passou há uns dias por uma escola em Sintra, observou desenhos da bandeira Ucrânia coladas nas janelas do edifício. Este pequeno gesto representa uma réstia de esperança que emocionou Iryna e encheu o coração dos seus familiares quando receberam a fotografia no seu telemóvel.
Mais tarde, durante um dos seus turnos no armazém do Centro de Apoio à Ucrânia, recebeu uns alunos de outra escola acompanhados da sua professora. Para além de doações de bens essenciais, levavam consigo um conjunto de desenhos feitos pelas crianças contendo caracteres em cirílico com mensagens de esperança e apoio. Rapidamente uma criança pede-lhe que se colem os desenhos nas caixas que estavam a enviar para a Ucrânia, pedido que foi prontamente aceite. Exagerando na fita-cola, uma outra criança começa a colar o seu desenho numa caixa e, quando se aproxima, percebe que atrás do desenho algo se encontrava. Quando questionada a criança sobre o que estava atrás do desenho, Iryna ouviu dela uma afirmação que a sensibiliza e emociona: “atrás do desenho está um doce e, quando a caixa chegar à Ucrânia, uma criança como eu pode ficar com ele”.
Iryna Ivashuk deixa-nos uma mensagem de confiança e paz, afirmando que são pequenos gestos que alteram o rumo de muitas vidas. Agir como cidadãos do mundo, responder a pedidos de ajuda, um simples sorriso ou um conjunto de palavras, têm um impacto e um poder transformador capazes de alcançar o impossível.
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