Por Maria João Melo Gomes
O desenvolvimento da autonomia é uma das competências psicossociais mais complexas e importantes da adolescência e a transição para a vida independente é, por norma, exigente.
Em jovens acolhidos torna-se ainda mais complexa, devido a histórias marcadas por descontinuidades e adversidades no seu desenvolvimento.
O lado da Instituição – 125 anos de acolhimento de jovens em risco.
Para entender como se prepara um jovem para essa fase da vida, falámos com Catarina Castel-Branco, diretora técnica do Centro de Promoção Juvenil- Casa da Estrela, em Lisboa, que completa neste ano 125 anos de acolhimento de jovens em risco: “É um facto que esta transição nem sempre se faz de forma tranquila e estruturada. Os jovens que saem destas instituições não têm o conforto idêntico aos que alcançam os que saem de casa dos pais: poderem voltar se as coisas correrem mal, ou se precisarem de algum apoio, mesmo que temporário. Depois de saírem é impossível voltar, apesar de muitos manterem o contato com as equipas técnicas e com a própria Instituição. Este tema só começou a ser pensado de forma estruturada há poucos anos e o papel desta equipa técnica é o de fazer despertar interesses para uma autonomia segura e estruturada e assegurar uma rede de apoio na saída dos jovens da Casa da Estrela.”
Vários estudos têm associado o acolhimento residencial a maiores dificuldades na adaptação à vida autónoma. O insucesso escolar, o desemprego, a parentalidade prematura, a atividade criminal, os problemas psicológicos são fatores apontados para esta dificuldade. A possibilidade de ser sem-abrigo pela falta de acesso à habitação, a solidão, os recursos financeiros insuficientes, a falta de retaguarda familiar e a falta de apoio social específico são outras realidades que muitos deste jovens têm que enfrentar.
Para colmatar e apaziguar todas as dificuldades acrescidas a que os jovens acolhidos estão sujeitos, torna-se essencial o desenvolvimento de programas de autonomia de vida, que contribuem para uma diminuição dos fatores de risco nos jovens que saem do acolhimento para a vida independente. Os jovens acolhidos que não beneficiaram de programas de autonomia de vida dependem mais de ajuda financeira pública em comparação com os jovens que participaram nestes programas.
Os projetos de autonomia destas instituições pretendem contribuir para uma diminuição dos fatores de risco nos jovens que saem do acolhimento para a vida independente, permitindo a formação em várias áreas da vida, quer seja a nível financeiro, doméstico, pessoal, social, de emprego ou escola e ainda nas áreas da saúde física, mental e sexual.
Quem vem de fora tem mais hipótese de ser ouvido – a PAJE
Quem já trabalhou no acolhimento de crianças em risco conhece as dificuldades que todos os envolvidos enfrentam.
Quem sai de uma casa de acolhimento porque lhe foi imposta essa saída, da mesma forma que a entrada lhe fora imposta, porque a lei impõe, ou porque alguém escolhe ou porque as circunstâncias assim determinaram, não sabe a quem recorrer quando fica doente, porque o médico de família ficou na localidade da Instituição.
João Pedro Gaspar fez deste tema a sua tese de doutoramento e assim nasceu a PAJE – Plataforma de Apoio a Jovens que dá suporte a cerca de 3 centenas de jovens adultos com historial de acolhimento e procura melhorar o perfil de saída, promovendo transições favoráveis para uma vida em autonomia.
Melhorar o acolhimento significa formar os cuidadores para tratarem das dores destes jovens, significa visitá-los juntamente com outros jovens que já estiveram ali, porque é mais fácil fazer chegar a mensagem através de quem já passou pela mesma situação. É fácil atribuir a estas crianças e jovens estereótipos e estigmatizar o seu futuro, mas também é possível melhorar o seu perfil de saída, porque quase ninguém está preparado para o mundo. É preciso sair e experimentar, pois a estes jovens não lhes é dada uma segunda oportunidade. Por isso é fundamental prepará-los.
Para além da autonomia funcional é importante a autonomia emocional. Não basta saber cortar batatas, é preciso saber quando começar a descascar, quantas batatas serão necessárias e quanto tempo se vai levar para cozinhá-las. Em casa, ou na casa de acolhimento, há alguém que nos pede ou nos indica que está na hora de ir cortar as batatas. É preciso que se habituem a decidir, e saber que errar faz parte da aprendizagem e do caminho.
Depois de saírem é impossível voltar
A Carolina, hoje na casa dos 30 anos, é mãe de um bebé e membro da Direção da PAJE. Esteve acolhida durante 11 anos, entrou aos 6 anos porque alguém decidiu por ela, e aos 21 saiu em conflito com a direção da Instituição. Corria o mês de junho, tempo de férias, sem grande preocupação, e chegou setembro. A realidade empurrou-a para a vida. Foi com a ajuda de uma funcionária da Instituição, que a recebeu na sua casa, e a sua rede de contatos, que conseguiu um emprego.
Carolina sempre cultivou uma rede de contatos e amizades que foram fundamentais perante as dificuldades que foi encontrando. Em janeiro seguinte conseguiu alugar uma casa. No entanto, outras dúvidas iam surgindo: como se pagam as propinas da Faculdade? Como se faz a declaração do IRS? Como tratar dos documentos de identificação? Ou como se marcam consultas? Como abordar as funcionárias do Centro de Saúde? Que vocabulário utilizar (trato por doutora, por senhora)?
Foram realidades que desconhecia porque na Instituição havia sempre alguém que disso cuidava e ela apenas tinha que se deixar levar.
Para Carolina, hoje a estudar Serviço Social, já não é difícil pedir ajuda, mas isso foi uma aprendizagem. Para ela, haver alguém que antecipasse as suas necessidades era uma miragem.
Há milhares de “Carolinas” que não são reconhecidos enquanto grupo, o que os deixa de fora das medidas de incentivo ao emprego, a menos que integrem outro grupo, esse sim considerado vulnerável: vítimas de violência doméstica ou ex-reclusos. E privadas de financiamento público ou de organizações como a PAJE.