Na Convenção do Rotary International que se realizou em Junho, o Rotary e a Fundação “Bill & Melinda Gates” reafirmaram o seu já antigo compromisso de apoio à tarefa de alcançar a erradicação da polio de modo muito impressivo: o Rotary comprometeu-se a angariar 50 milhões de dólares em cada ano dos próximos três, e cada dólar que alcance será correspondido por outros dois dólares oferecidos pela Fundação “Gates”. Esta extensão do acordo que já havia entre as duas Organizações traduzir-se-á em mais de 450 milhões de dólares para investimento nas actividades conducentes à efectiva erradicação da doença. Jay Wenger, Director do programa de erradicação da polio da Fundação “Gates”, fala sobre o seu trabalho enquanto epidemiologista e, bem assim, sobre o quanto é mesmo importante acabar de vez com a polio:
Desde muito cedo desejei ser médico, era ainda menino, mas no princípio a minha preferência era tornar-me médico-de-aldeia – de clínica geral.
Tal intenção inicial veio a mudar quando tive o ensejo de trabalhar numa missão hospitalar durante um bom par de meses integrada no curso. Duma coisa me dei conta nessa experiência: que podem proporcionar-se bastantes cuidados de saúde e de prevenção de muitas doenças apenas com uma relativamente pequena importância de dinheiro.
Por mero acaso acabei por me interessar pelas doenças infecciosas. Gostava de me concentrar em qualquer coisa específica – em algo que me dissesse mais qualquer coisa que simplesmente saber tudo de tudo, como me parecia o ser um médico de clínica geral. E fui para os Centros NorteAmericanos de controle e Prevenção de Doenças (CDC), onde vim a receber formação adicional em epidemiologia por doenças infecciosas.
A epidemiologia exige o estudo dos comportamentos da doença quanto a toda a população – desde o determinar como é que se fica doente, como é que a doença alastra e como pode ser evitada. E isso inclui trabalho quanto a recidivas, o que corresponde, mais ou menos, a descobrir os mistérios da doença mas exigindo sempre uma intervenção o mais rápida possível.
Quando eu estive nos CDC, aqui estudávamos uma situação de recaída, ou seja em que cerca de uma dúzia de indivíduos da mesma área são tingidos pelo mesmo foco de infecção. Por isso, fui para a zona atingida e comecei por tentar determinar o que tinham em comum aquelas pessoas. E veio a verificação de que todas elas tinham sido tratadas na mesma clínica particular – foi uma primeira constatação. Mas, à medida em que fomos avançando nas pesquisas, descobrimos que todas tinham sido sujeitas a certa intervenção cirúrgica. No final, chegámos à conclusão de que todos estes casos se relacionavam com uma simples garrafa de um fluído utilizado nessa clínica, e era ele que tinha contaminado o equipamento que lá usavam.
É justamente isto o que, em grande medida, fazem os epidemiologistas: seguimos o rasto das doenças infecciosas procurando descobrir como é que elas se espalham e, então, com um pouco de sorte, como se poderá pôr-lhes um travão.
Trabalhei integrado num grupo dos CDC que se aplicava na bactéria da meningite, que provoca uma infecção no cérebro e na medula espinal. Uma bactéria chamada “Haemophilus influenzae”, Tipo B (Hib) que era a causa mais comum, infectando mais de 15.000 crianças, todos os anos, nos EUA. Foi na altura em que a vacina “Hib” tinha acabado de ser desenvolvida. Vi-me a fazer a monitorização sobre o quanto a doença se manifestava naquela região e como iam decorrendo as acções de vacinação, e isso foi realmente avassalador. Detectámos milhares e milhares de casos em cada ano que foram reduzidos a umas duas dúzias à medida em que se ia aplicando a vacina em todas as crianças do País.
Apreciar o poder de um programa de vacinação foi parte fundamental do que acabou por me levar a envolver-me com a questão da erradicação da polio.
Nasci em 1955, ou seja, por incrível que pareça, o mesmo ano em que a vacina Salk contra a polio foi reconhecida e introduzida nos EUA. Nessa altura, a polio era a mais temível doença infecto-contagiosa do país.
Para se compreender o significativo desenvolvimento da vacina contra a polio, temos de atender ao pavor que reinou quanto a esta doença nos anos 30, 40 e 50 do século passado. Quando chegou o verão, os pais andavam aterrorizados com medo de que seus filhos contraíssem a doença e ficassem paralizados ou morressem mesmo. Quando chegou a primeira vacina, em 1955, foi como se acontecesse um milagre médico.
Mesmo depois que nasci, o espectro da polio preocupava muito as pessoas. Havia campanhas sobre a nova vacina oral em que gotas dela deviam ser colocadas nos cubos de açúcar que depois a gente ingeria. Ainda me lembro de tomar desses cubos contra a polio quando era miúdo.
A polio tornou-se no melhor exemplo duma vacina bem sucedida – o número de casos de polio caiu das centenas Na Convenção do Rotary International que se realizou em Junho, o Rotary e a Fundação “Bill & Melinda Gates” reafirmaram o seu já antigo compromisso de apoio à tarefa de alcançar a erradicação da polio de modo muito impressivo: o Rotary comprometeu-se a angariar 50 milhões de dólares em cada ano dos próximos três, e cada dólar que alcance será correspondido por outros dois dólares oferecidos pela Fundação “Gates”. Esta extensão do acordo que já havia entre as duas Organizações traduzir-se-á em mais de 450 milhões de dólares para investimento nas actividades conducentes à efectiva erradicação da doença. Jay Wenger, Director do programa de erradicação da polio da Fundação “Gates”, fala sobre o seu trabalho enquanto epidemiologista e, bem assim, sobre o quanto é mesmo importante acabar de vez com a polio: 1 8 PORTUGAL ROTÁRIO | OUTUBRO de milhar todos os anos para zero nos EUA e noutros países com programas de saúde. Mas a doença continuou a ser uma grande ameaça no mundo sub-desenvolvido.
O vírus da polio ataca um tipo de células da medula espinal e, quando estas células são mortas, não há maneira de o cérebro enviar mensagens ao músculo. O resultado é o que costuma designar-se por paralisia flácida aguda ou AFP, e esse músculo deixa de funcionar para sempre – não pode flectir nem contrair-se. O vírus afecta frequentemente um braço ou uma perna, que tendem a progressivamente deixar de funcionar. Por vezes a doença afecta os músculos do peito ou do diafrágma, e, nesse caso, a polio pode ser fatal, pois o doente não consegue respirar.
O que torna possível livrar-nos do vírus é a circunstância de ele se poder reproduzir apenas nos humanos e de que ele pode viver no corpo humano apenas de poucas semanas a cerca de um mês até que o corpo reaja a ele. Nesse período de tempo, o vírus aloja-se nas fezes, mas, uma vez fora do corpo humano, apenas sobreviverá durante uma ou duas semanas. Tem de arranjar outra vítima humana para infectar nessa altura, ou então morrerá. Portanto, se se conseguir quebrar a cadeia de transmissão – deter o vírus antes de se espalhar de pessoa a pessoa imunizando bastante gente mediante a aplicação da vacina – então poder-se-á empurrar o vírus para a sua extinção. Mas é preciso eliminar o vírus de toda a parte pois, doutra forma, ele pode regressar e reinfectar lugares donde já tinha sido eliminado.
Foi por isso que a Assembleia da Saúde Mundial votou em 1988 no sentido de erradicar a polio. O Rotary já era nessa altura incrivelmente importante. Tomava conta dessa missão desde o princípio e ajudava numerosos países desde os primeiros passos.
Pude ver bem o impacto que faziam e, como epidemiologista, fui convencido da possibilidade de conseguirmos eliminar a doença da face da Terra, se estivermos mesmo apostados nisso.
Em 2002, tive a oportunidade de trabalhar com a OMS na Índia. Fui dirigir o Projecto Nacional de Vigilância da Polio. Foi aqui que pela primeira vez pude apreciar como é que o Rotary trabalha com um país.
Uma grande parte dos apoios dados pelo Rotary reside nas suas campanhas de recolha de fundos, claro. Com um trabalho quanto este, são precisas fontes de financiamento convenientes e o Rotary sempre foi muito incisivo que querer mesmo levar a tarefa até ao fim. O seu apoio tem sido incondicional.
Creio, porém, que o aspecto mais cativante do trabalho com os Rotários terá sido notar a que ponto eles fizeram desenvolver o sentido de serviço em cada país. Nos Estados Unidos, trabalharam com cada distrito do Congresso e em Washington, D.C., na promoção de trabalhos de vacinação. Em regiões como a Índia, rapidamente aprendi que o apoio dos Rotários é de valor incalculável. Por exemplo, no princípio enfrentávamos entraves com líderes políticos locais – mas, não obstante quererem saber com quem estávamos a trabalhar, sempre podíamos confiar num Rotário do lugar para estabelecer contactos com políticos no sentido de os persuadir a apoiar o programa da polio.
Mais em concreto, os Rotários criavam um sentido imediato de legitimidade e de urgência. Eram elementos influentes nas suas respectivas comunidades e as pessoas concordavam quando eles recomendavam a erradicação da polio.
Deter a polio na Índia foi um enorme feito. Desde cidades altamente povoadas como Mumbai até às aldeias mais remotas no topo de montanhas, tivemos de ter a certeza de que todas as crianças foram vacinadas.
A maior parte do trabalho de campo que realizei foi no norte, pois tinha sido aí que tínhamos detectado novos casos. Enquanto chefe do programa de vigilância, tinha de examinar crianças com polio. Certa vez, viajando para um Estado do norte chamado Uttar Pradesh, fui ter a uma pequena casa com uma só divisão na qual uma rapariguinha estava sentada numa enxerga, com uma perna artificial.
A perna dela ficou paralizada durante alguns meses. Havia coisas que podíamos fazer, como assegurar que ela teria adequada terapia física e prótese. Mas coisa que não podíamos era dispor de alguma hipótese de cura da sua perna paralizada. A mãe dela olhava para mim com ansiedade e eu bem imaginava o que lhe ia no pensamento: -“Tenho aqui um grande médico vindo do Ocidente e ele vai saber o que fazer. Ele saberá como tratar a minha filha.”
Este sentimento de incapacidade, aqueles momentos em que enfrentamos de facto as vítimas – esses são realmente a minha mais forte motivação. São a força essencial do programa de erradicação, pois podemos atacar a polio logo que se manifesta. Mas não podemos atacá-la antes que se manifeste.
Em 2011, assumi as minhas funções na Fundação “Gates”. Por essa altura, o Rotary e a Fundação “Gates” já eram parceiros de referência, e o Rotary tinha desempenhado um papel de topo trazendo a Fundação para o programa da erradicação global da polio havia alguns anos.
Por essa mesma altura, ocorreu o último caso de polio na Índia, que inspirou a comunidade a acreditar que estava a ponto de atingir a erradicação global. O Rotary e a Fundação “Gates” manifestaram a sua presença definindo um plano estratégico de vários anos para acabar de vez com a polio, juntamente com outros parceiros no âmbito da Iniciativa para a Erradicação Global da Polio (a OMS, os CDCs e o UNICEF).
Em Junho de 2013, o Rotary anunciou que iria contribuir com 35 milhões de dólares por ano para as acções a desenvolver num período de cinco anos, valor que a Fundação “Gates” acompanharia na proporção de 2-para-1. Em Junho de 2017, o Rotary disse que iria elevar essa contribuição para 50 milhões por ano e durante os próximos três anos, valor que, também, a Fundação “Gates” acompanharia naquela dita proporção.
O que é preciso que as pessoas tomem consciência é de que, quanto à erradicação da polio, diferentemente com o que se passa com os programas de muitas outras causas de saúde pública, nós não podemos escolher o caminho a adoptar: temos de ir aonde esteja a doença.
Actualmente, restam somente três países em todo o mundo nos quais ainda pode ser que circule o vírus selvagem da polio: o Afeganistão, o Paquistão e a Nigéria. São estes países que colocam incríveis desafios para o trabalho a fazer neles, devido ao facto de oferecerem os maiores obstáculos para a luta contra doença.
Não podemos, de todo, esquecer estas regiões ou deixar para mais tarde a oportunidade de lidar com elas, pois que isso significaria que fomos derrotados pela polio – se o vírus continuar presente em algum lado, ele poderá voltar a espalhar-se aos países dos quais já o tínhamos expulsado. Temos de alargar os nossos esforços aos mais difíceis lugares do mundo, e chegar à derradeira criança por ele atingida.
A pergunta que mais vezes me foi feita é quando estaremos em condições de ver declarado que a polio se foi de vez do nosso Planeta. Eu respondo que estamos a empenhar-nos seriamente e estamos quase lá.
No ano passado, em finais de Julho, havia 19 casos detectados de polio em todo o mundo. Neste ano, já só foram relatados oito. Não obstante, o único meio de sabermos que a polio foi, de facto, erradicada será constatar que durante três anos nenhum novo caso de polio surja, e eu estou optimista de que brevemente isso acontecerá.
No meu trabalho de epidemiologista já vi que é possível deter a doença tal como conseguimos com a varíola. Não nos limitámos a reduzir-lhe o número de casos; baixámos esse número para nenhum.
Se eu fosse de tipo mais romântico, permitir-me-ia sonhar acerca do futuro com um mundo livre de polio, mais vezes. Mas sou uma abelha obreira e gosto de manter a cabeça fria e focada no trabalho que ainda tem de ser feito para se atingir aquela meta.
O que penso sobre isto tudo – que é que o Rotary e a Fundação “Gates” fazem que me mantém interessado – é mais o lado humano. Ainda me lembro dos tempos da minha infância, quando muita gente vivia aterrorizada com medo da polio. E tive o ensejo de ver em primeira mão nos meus trabalhos de campo o que é que a polio faz às suas vítimas e às respectivas famílias.
É isso o que me faz continuar a trabalhar.
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