Por Maria João Gomes | RC Parede-Carcavelos
Diz-me sem hesitar que Olivia Newton John, que morreu de cancro de mama o ano passado, é a sua cantora preferida. Tem outra paixão: a poesia, que escreve com menos intensidade nestes tempos, para a qual contribuem as vidas e as pessoas que com ela se cruzam no seu percurso profissional. Nasceu em Moçambique e com 8 anos regressou ao Porto onde nasceu o seu pai, e onde diz que se sente melhor que em Lisboa. Não ficou muito tempo em casa dos avós e, estando a sua mãe, natural de Chaves, a lecionar na escola da sua residência, optou por fazer o liceu na Amadora porque as notas teriam que ser obrigatoriamente altas para entrar em medicina e assim fugia ao estigma de ter boas notas, por causa da mãe. A vida dá muitas voltas e fez o 12º ano numa escola temporária em Algés, nas docas, onde se encontra hoje o edifício da Fundação Champalimaud. Porque o Porto é a sua terra de coração transferiu-se da Faculdade de Medicina de Lisboa, no Hospital de Santa Maria, para o Porto onde se licenciou e no final da especialidade foi à Bélgica por 4 meses, conheceu a professora MartinePiccart, que a convidou para um projecto de 2 anos e ficou 10. Nasceu numa família de engenheiros e professores, mas sempre quis ser médica, ainda pensou em veterinária, mas diz que a vocação nasceu com ela.
Como estamos em Portugal a tratar o cancro?
Já esteve melhor, se pensarmos que o tempo médio de sobrevida a um diagnóstico de cancro metastásico é de 3 a 5 anos e os novos medicamentos demoram em média 700 dias anos a serem aprovados depois de aprovados pelos organismos europeus, este tempo deixa muitos mortos pelo caminho. Há muita burocracia nas aprovações em Portugal, também quando falamos do tempo que demora em Portugal a abrir um ensaio clínico, quando abre já ele terminou nos outros países da Europa. Estamos de novo com tempos muito alargados.
Que papel tem a investigação?
Em investigação temos duas vertentes a investigação clínica e a translação. A investigação clínica faz-se no laboratório e em Portugal temos muito boa qualidade. A translação faz-se junto dos doentes e da clínica e aí temos um longo caminho a percorrer. Conheci a translação em Bruxelas e para juntar estas duas vertentes é preciso um conhecimento específico que ainda é pouco praticado em Portugal. Temos pouco envolvimento da sociedade em geral, noutros países há muito mais intervenientes nestes processos.
“Ainda há um grande estigma principalmente para o diagnóstico nos homens”
Como se organiza a sociedade em torno dos doentes? Como é lidar com o diagnóstico?
É preciso que os doentes se organizem, falem e participem, porque os médicos e investigadores são pouco ouvidos. Há que replicar o trabalho que os rotários fazem na sociedade. Criar grupos de apoio e ajudar os doentes a organizar-se e a fazerem ouvir-se junto da investigação, do governo e das comunidades.
Em Portugal existem muitos grupos de apoio para o cancro precoce, que tem uma sobrevida bastante alta e há muito material de suporte e ajuda, mas quando falamos de cancro avançado ou metastásico temos uma realidade muito distinta, desde o tempo que demora a aprovação dos medicamentos, até à legislação laboral. Se pensarmos que um doente precisa de flexibilidade no trabalho, porque ainda tem capacidade e quer trabalhar, mas que as consequências físicas dos tratamentos e o tempo em que precisa de visitar o hospital, lhe dificultam a continuidade porque o empregador não é compensado – só lhe resta a baixa médica, com outras consequências na sua saúde mental e autoestima.
Que estórias a marcaram? O estigma ainda existe?
A grande maioria das pessoas que encara este tipo de diagnóstico muda para melhor, colocam as suas vidas sobre a perspetivacorreta. Ainda há um grande estigma principalmente para o diagnóstico nos homens, que sendo uma doença rara não tem os mesmos materiais de divulgação e suportes, que são feitos maioritariamente para mulheres. A parte estética é importante tanto para homens como para mulheres e hoje é um fator importante a ter em conta, no percurso da doença. Deixar de ir à praia ou usar t-shirts ocorre em ambos os sexos.
É difícil lidar com diagnósticos em mulheres jovens, onde o cancro é mais agressivo, com filhos pequenos ou que ainda pensam em ter filhos. Lembro uma mãe com um filho bebé, que me pediu ajuda para que o filho se lembrasse dela. E quando entrou em fim de vida, agradeceu dizendo: agora posso partir porque o meu filho vai lembrar-se de mim. Outra mãe que dava nomes de flores aos filhos e cujo filho nascido fora do esperado (tinha menos 10 anos que os irmãos) lhe perguntava que flor era ele e ela dizia: és o meu amor perfeito.
A morte? Como se lida com ela?
Sou crente e não tenho medo da morte, a vida é mais assustadora e a morte é inevitável, mas o sofrimento não é! Na Fundação Champalimaud trabalhamos num modelo integrado compaliativistas e oncologistas para aliviar o sofrimento que estes doentes inevitavelmente sentem. O percurso de doença é mais tranquilo se ouvirmos os outros.
PERFIL
Fátima Cardoso é a Directora da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud (CCC) em Lisboa, Portugal. Tem as especialidades de oncologia médica e medicina interna.Licenciada em Medicina pela Universidade do Porto, Portugal, estagiou na Unidade de Investigação de Translação do Instituto Jules Bordet em Bruxelas na Bélgica (Prof. MartinePiccart) e no Departamento de Oncologia Molecular e Celular do MD Anderson CancerCenter em Houston, Texas (Prof. Mien-Chie Hung).
Trabalhou 10 anos como Professora Auxiliar da Clínica de Oncologia Médica do Instituto Jules Bordet. Regressou a Portugal em outubro 2010, para criar a Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud, tornando-a a primeira unidade de mama certificada em Portugal.
Faz parte de vários comités nas mais importantes organizações internacionais como ESMO, ASCO, ESO, EORTC, AACR, E.C.O. É fundadora e Presidente da Conferência Internacional de Consenso sobre Cancro de Mama Avançado (ABC) e da ABC Global Alliance.
Recebeu várias bolsas de investigação e de formação de diversas organizações, incluindo da União Europeia e da BCRF.
Em 10 de Junho de 2015, foi-lhe atribuída a prestigiada Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, por Mérito Científico.
Recebeu igualmente outros prémios, tais como o FlimsAlumni Club LifetimeAchievementAward 2022, o Prix Nice – St Paul 2017, o Reach to RecoveryInternationalHealth Professional Award 2019, o AdvancedBreastCancerAward 2019, o Jin Xian-zhaiSpecialAchievementAward 2020, o EuropeanBreastCancerScienceAward 2020, o Umberto Veronesi Memorial Award 2021 e o ESMO Women for OncologyAward 2022.
É autora de cerca de 350 publicações e tem apresentado o seu trabalho tanto a nível nacional como internacional.