Por Miguel Rijo e Cláudia Oliveira
Henrique Cymerman, nascido na cidade do Porto de pais judeus de ascendência polaca e marroquina, é neto de um judeu polaco que perdeu tudo devido ao Holocausto e que se fixou em Portugal. Aos 16 anos decidiu ir para Israel sozinho. Licenciou-se na Universidade de Tel Aviv em Ciências Sociais, seguindo-se o Mestrado em Ciências Políticas e Sociologia. Foi docente na mesma Universidade, onde aperfeiçoou os seus conhecimentos de hebraico e árabe. Jornalista de profissão e correspondente de vários meios de comunicação social para o Médio Oriente, de que é um profundo conhecedor, é igualmente reconhecido pela sua ligação ao Papa Francisco e, por seu intermédio, tem promovido uma ação de Paz única no mundo, designadamente o encontro histórico entre o Papa, o Presidente palestiniano Mahmoud Abbas e o Presidente israelita Shimon Peres, acontecimento classificado como um gesto histórico sem precedentes a favor da paz entre israelitas e palestinianos, causa que Henrique Cymerman, abraça com grande paixão
“É preciso preparar as opiniões públicas e educar para a Paz” O Papa Francisco apelidou-o de Anjo da Paz em 2014, depois que ele ajudou a promover um encontro histórico entre os líderes israelita e palestiniano. A partir do Médio Oriente, onde reside, o jornalista, com nacionalidades portuguesa, espanhola e israelita, não tem dúvidas em apontar a educação como essencial para evitar guerras. E Rotary, garante, tem feito um bom trabalho neste campo.
- Em pleno século XXI, depois do mundo ter vivido tantos conflitos, como se explica que se repitam guerras e mortes a elas associadas?
As guerras continuam pelos mesmos motivos que existiram sempre durante vários milénios e que provavelmente vão continuar a existir de uma maneira ou de outra. Podem mudar as guerras, mas continuará a haver guerras porque são parte da natureza humana a luta por dinheiro, poder, influência, aplausos e, às vezes, até pela sobrevivência de regimes. Mas talvez o motivo mais grave de hoje em dia, e base de muitas guerras, são os radicalismos ideológicos ou religiosos. Às vezes pode haver guerras provocadas pela falta de água, por exemplo, ou pela falta de alimentos ou até pela própria violência nacional, tribal ou pessoal como resultado de tudo isso. É preciso lutar contra isso e também contras as guerras que ocorrem entre as guerras. Isso também existe, o terrorismo é parte disso. Eu estou numa zona onde vejo isso muito claramente nas últimas décadas. Estou no único lugar do mundo onde se fizeram tratamentos de post trauma, não só para crianças e adultos, mas também, por exemplo, para jornalistas que, pela cobertura de zonas de conflitos, se viram afetados pelo que viveram, ou para jovens adultos que têm enurese noturna devido aos medos e pesadelos que os assombram. Na Europa houve cerca de 80 milhões de mortes nas duas guerras mundiais, mas a Europa continua a ver todo o tipo de guerra como uma coisa não justificada. Há guerras, como a guerra contra os nazis, que podiam ter alterado o mundo inteiro, ou, noutra escala, a coligação internacional contra o Daesh (Estado Islâmico), que são legítimas, sendo todavia verdade que a maioria das guerras não o são. Por exemplo, a guerra de 1967 em Israel, altura em que eu estava no Porto e era uma criança, lembro-me de ouvir as ameaças da Rádio Cairo enviadas em hebraico à população israelita para se ir embora porque iria ser atirada ao mar. Lembro-me que conheci um professor universitário que me contou um dia que, antes de partir para a frente de combate na reserva, deixou umas pílulas de cianeto à sua mulher, com indicação de que as tomasse caso entrassem no país, algo de terrível e insuportável. Antevia- -se um massacre, mas o que aconteceu foi que realmente houve uma guerra, mas 10 anos depois chegou lá o Presidente egípcio, o mesmo que tinha feito a guerra em 1973, para propor a paz. À sua espera, além da comitiva do governo, estava, escondida, uma unidade militar israelita porque no exército não acreditavam que isso fosse possível. Ou seja, eu penso que, para lutar contra as guerras, é preciso preparar as opiniões públicas e educar para a Paz. Isto não é fácil e é um processo bem longo.
- A promoção da paz e a prevenção de conflitos são bandeiras do Rotary, enquanto Movimento internacional. Sente a nossa presença no terreno?
Sinto a presença do Rotary, sim. No Médio Oriente e em Israel é notável: há muitos membros que promovem todo o tipo de atividades, sobretudo ao nível da educação e ação social, no diálogo entre religiões e povos e da luta pela Paz. Foi muito interessante para mim descobrir que no Dubai há cinco clubes diferentes e que um deles, de Jumeirah, tomou a iniciativa de pedir à Câmara de Comércio e Indústria Israel-Países do Golfo, a que presido pro-bono, que fosse levado um grupo de dança folclórica israelita ao Dubai, o que aconteceu no final de janeiro, numa iniciativa de todos os clubes do Dubai para promover o processo de diálogo intercultural. O Rotary está à frente desta luta por conseguir promover o diálogo e, neste caso, que os acordos de Abraão, que é paz entre Israel e alguns países árabes, assinado há um ano, continuem e se aprofundem.
- O que pode ser feito para prevenir os conflitos? O que podem os Rotários e os demais cidadãos fazer para ajudar a evitá-los?
Penso que o que pode ser feito para evitar as guerras volta sempre ao mesmo ponto. Destaco três coisas: (i) educação, (ii) educação, (iii) educação. E no mundo atual não é só uma educação nas escolas ou nas Universidades, pois que estamos a falar de uma educação, também formal, mas também duma educação não formal e sobretudo daquele grande megafone que se apoderou das nossas vidas, que são as redes sociais e que chegam hoje em dia às massas, sobretudo aos jovens e a países e zonas de conflito onde não há uma democracia e liberdade de imprensa clara, como acontece na maioria dos países do Médio Oriente. Israel é a única exceção que tem um regime democrático e com liberdade de imprensa. Mesmo em países não árabes muçulmanos, como é o Irão, as pessoas, para saberem o que lá acontece, vão às redes sociais. São necessárias iniciativas de desenvolvimento de programas escolares, em que em todos os países do mundo haja 1h por semana para se falar sobre o outro. O outro lado, não só o outro no sentido político senão também no sentido religioso, espiritual, no sentido de pessoas diferentes de cada um de nós. Conseguir entender o fato de sermos diferentes não é um pecado nem nos transforma em inimigos. Isto é um valor ainda pouco enfatizado e é por isso que em tantos lugares do mundo ainda há jovens que vêem na guerra a única solução para eliminar o inimigo. Este é um papel que institucionalmente o Rotary pode e deve promover.
- Participou, em 2014, na promoção do encontro, no Vaticano, entre o Papa Francisco, o palestiniano Mahmoud Abbas e o israelita Shimon Peres. Considera que deu um contributo no caminho para a Paz no Médio Oriente?
É verdade que fui um dos promotores desta iniciativa, a pedido do Papa Francisco, da oração pela Paz, que teve lugar em 2014 e hoje em dia pode parecer até um pouco surrealista quando olhamos para isso e vemos a situação atual. Em momentos de frustração disse ao Papa que não conseguimos chegar a essa Paz e ele respondeu-me, com muita lógica e inteligência: “é um caminho longo, mas nós demos um passo importante”. Foi a primeira vez que jovens israelitas judeus do mundo inteiro, por um lado, e jovens muçulmanos de países que nunca viram um judeu sob um aspeto positivo, por outro, que vão ver o outro pela positiva, a rezar pela Paz, e isso é algo que vai ter uma influência sobre o futuro e é um passo mais nesse longo caminho. Quando o Papa me declarou Anjo da Paz e me disse isso eu pensei que estava a brincar comigo, já que ele tem um grande sentido de humor, e disse-lhe: “Papa Francisco, eu não tenho asas”, ao que respondeu: “Hás-de ter. Algum dia elas vão crescer”. Eu acho que ele se referia a esta longa caminhada para atingir o objetivo da Paz. É difícil. É o desafio mais antigo da história da Humanidade. Creio que demos mais um passo importante há um ano, onde tive também o privilégio de fazer parte, para o processo dos chamados “Acordos de Abraão”, entre Israel, os Emiratos Árabes Unidos, o Bahrein, Marrocos e o Sudão, que espero seja o princípio de um livro que, de 20 capítulos, vai no 5.º. Espero que continuem os acordos entre Israel e outros países árabes e que cheguemos a um acordo definitivo, num futuro não muito longínquo, com o povo palestiniano.
- É português, filho de pais judeus, vive numa zona em que várias religiões confluem… A convivência com a diversidade potencia a tolerância ou pode exacerbar as divergências?
Nasci em Portugal, sou filho de um refugiado que teve de fugir da Polónia devido ao antissemitismo daquela época, e que veio para Portugal, onde foi recebido, bem como toda a família. Hoje em dia, creio que já não há lugares onde não haja várias religiões que confluem e onde é necessário construir essa convivência com a diversidade que, deve ser um fato, não é fácil de construir. Vejo, por exemplo nos atentados terroristas islamitas que houve na Alemanha, na Bélgica, na França e na Grã-Bretanha, nos últimos anos, que 60% dos terroristas eram filhos de imigrantes que chegaram a esses países vindos do Médio Oriente, mas os filhos não se integraram, perderam o contato com a pátria original e o resultado foi a sua transformação em terroristas. 15% destes casos eram já a terceira geração dos imigrantes originais. Os restantes são europeus que se converteram ao Islão e que se transformaram em terroristas. Penso que, hoje em dia, temos de compreender que vivemos em sociedades multiculturais, já ninguém se veste de forma igual ou usa os mesmos perfumes e professa a mesma religião, como nos anos 70 na Europa. Temos de encontrar a fórmula para conviver de forma harmoniosa, senão vamos estar em conflitos permanentes. É um dos grandes desafios que temos no Mundo atual e na era pós-covid, retomar os desafios que nos levam à construção da Paz.
- Como se vive no Médio Oriente com tantas fações a coabitarem o mesmo território?
É complicado. Dizia o fundador de Israel, David Ben-Gurion, “demasiada história para tão pouca geografia”. Diferentes povos, religiões e culturas encontram-se praticamente umas em cima das outras e, por vezes, isso complica ainda mais a luta pela convivência. Mas de nenhuma maneira é motivo para renunciar a ela
- Há outros conflitos no mundo. Os motivos das diferentes guerras são muito díspares ou há repetições?
Sem dúvida. É verdade que parte dos conflitos está relacionada, atualmente, com o tema do Islão. Talvez porque das três religiões monoteístas o Islão é a mais jovem, tem só 1 300 anos, e ainda está numa espécie de fase de desenvolvimento. O Cristianismo por esta altura ainda estava numa era de Cruzadas e Inquisitória. Há, no entanto, outros conflitos atuais, como o caso da Rússia e a Ucrânia que têm outros motivos, como por exemplo o tentar desviar a atenção dos seus próprios problemas económicos e sociais ou ganhar influência, poder e dinheiro. Os mesmos motivos que citava anteriormente. A falta de água é outro exemplo que pode levar a guerras no Médio Oriente no futuro. Há países que estão a ter enormes dificuldades, justamente numa época em que existem tecnologias que podem ajudar a resolver o problema da água, como está a acontecer neste momento em Israel. É preciso olhar para a frente e lutar, em cada caso, com as armas necessárias para evitar mais guerras e conflitos e mortes desnecessárias e dramáticas.
- Qual a personalidade que considera ter (ou ter tido) um papel mais marcante na prevenção e/ou resolução de um conflito? Porquê?
Uma vez, o meu avô disse-me que os estúpidos estão cheios de certezas e os inteligentes estão cheios de dúvidas. Eu acho que há dois líderes, um israelita e um árabe que, para mim, são quem desenvolveu, depois de terem dedicado a sua vida à guerra, uma estratégia de paz, o que tem ainda muito mais mérito. São eles Yitzhak Rabin, o general da paz israelita, primeiro-ministro que governou Israel pela segunda vez entre 1992-95 e que fez aí uma metamorfose, não porque fosse um hippie que cantava peace and love, senão porque foi um homem que tinha pago um preço extremamente alto, sendo um chefe militar que lutava pela sobrevivência de Israel, e perdeu muitos soldados e companheiros – o que apresenta como o seu maior trauma – e que decidiu ir pelo caminho da Paz. A mesma coisa tinha feito antes o Presidente do Egito, Anwar Al Sadat, um homem que disse estar disposto a sacrificar 1 milhão de soldados para recuperar os territórios árabes e que, depois, se meteu num avião e foi ao parlamento israelita propor a Paz. Os dois pagaram, infelizmente, com as suas vidas, assassinados por radicais que não acreditavam nesse caminho. Infelizmente, estes radicais podem vir a ter uma espécie de direito de veto, mas eu acho que estes dois homens vão entrar nos livros de História, dentro de 50 ou 100 anos, quando algum dia realmente houver Paz ou, pelo menos, estivermos muito mais perto dela do que atualmente. É preciso ser muito mais valente para chegar à Paz do que fazer a guerra, e estes dois homens foram verdadeiros valentes que deram os primeiros passos neste longo caminho. Por isso serão lembrados.