“Nas empresas, começaram a preocupar-se com os impactos na saúde mental.
Vão ter que ter isso cada vez mais em conta se querem sobreviver”
Por Cláudia Oliveira e Solange Falé
Francisco Miranda Rodrigues é o bastonário da Ordem dos Psicólogos desde 2016, tendo sido reeleito para um novo mandato em novembro de 2020. Num mês dedicado ao desenvolvimento económico e comunitário, fomos ouvir quem representa um dos setores de saúde mais valorizado em tempo de pandemia: a saúde mental. Os hábitos influenciam a nossa longevidade e saúde e não são mais que rotinas de comportamentos, cujos especialistas são os psicólogos. O bastonário lembrou o muito que foi feito durante esta pandemia e deixa alertas às empresas, para que consigam segurar os seus talentos.
(PR) Ano e meio depois de um quotidiano com pandemia, como está a saúde mental dos portugueses?
(FMR) Está afetada, como a saúde mental de muitas outras pessoas pelo mundo fora – pelo menos assim o indicam todos os estudos que têm sido divulgados –, com uma agravante, quando comparada com outros países, porque já tínhamos alguns níveis preocupantes de problemas de saúde mental antes do aparecimento da pandemia, uma série de vulnerabilidades. Seja porque em alguns casos, como é a educação, só recentemente se começou a ter a aposta nas questões preventivas e de desenvolvimento das pessoas desde cedo para criar mais resiliência, seja porque o país não tem uma literacia em saúde, e a psicológica em particular, seja porque a pobreza atinge uma percentagem grande da população (20%)… são muitas as situações propícias e se conjugam para fazer da situação portuguesa, à partida, mais complicada. A pandemia veio agravar e fazer surgir novas situações.
É certo que a pandemia também teve o condão de dar maior visibilidade a esta área da saúde mental e permitir que mais gente tivesse acesso a informação e compreensão de como funcionamos ao nível psicológico, estando mais despertos e atentos à nossa saúde. Por outro lado, também permitiu o reforço de algumas respostas, além da pandemia. É expectável que venhamos a sentir durante mais tempo, mesmo depois de debelada a questão epidemiológica, a questão psicológica.
(PR) Estamos dotados de ferramentas que nos permitam reconhecer que precisamos de ajuda e pedir ajuda?
(FMR) Também se chama a isso literacia. Julgo que há muito ainda para fazer. As autoridades de saúde, na estratégia outono- inverno, consideram, desta vez, e contemplam, a literacia em saúde na resposta à pandemia, vimos a trabalhar nisso desde o princípio da pandemia e apostámos em fazer chegar materiais – fizemos mais de 200 materiais informativos para a população –, em formatos muito diversos. Criámos um site chamado https://eusinto.me, para tentar ajudar as pessoas à identificação de alguns sinais que possam ser mais preocupantes. Talvez seja, em Portugal, neste momento, a ferramenta que mais depressa chegue às pessoas, numa primeira dúvida. A literacia é ainda um problema, mas não seria neste ano e meio de pandemia que se acabaria com esse problema pois literacia não é só informação. Temos que investir muito mais em ajudar as pessoas a compreender a informação.
Existe ainda um outro site, com informação fidedigna, chamado https://encontreumasaida.pt, onde todas as informações estão escritas em linguagem acessível.
Há um trabalho enorme a fazer no acesso aos profissionais desta área. Existem pessoas que, infelizmente, desenvolveram a doença mental, perturbações mentais. Há uma percentagem significativa de pessoas que ao longo da vida pode desenvolver uma perturbação mental, que pode não ser grave. Depois, há uma percentagem muito mais pequena, que deve ser de 2%, que desenvolve perturbações mais graves, mas a grande maioria da população – a outra categoria, algures, uns mais outros menos, têm problemas de saúde psicológica, que não são perturbações. Isto é um contínuo. Muito antes de termos perturbações, todos nós temos, durante a nossa vida, problemas psicológicos, que nuns casos resolvemos por nós próprios, noutros casos resolvemos com ajuda de pessoas próximas, outros precisamos de ajuda profissional.
Em nenhum destes casos estamos a falar de doença mental. Isso não significa que não precisemos de ajuda para resolver, por exemplo quando passamos por um divórcio doloroso, que causa sofrimento que se prolonga no tempo, a morte de pessoas que nos são próximas… há um conjunto de coisas que afeta a nossa saúde psicológica. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a saúde não é ausência de doença,
mas um estado de bem-estar físico, psíquica e social. Temos tendência a focar-nos no físico, porque é algo concreto, quando comparado com as circunstâncias psicológicas. Nesse sentido, o trabalho dos psicólogos nos Centro de Saúde não é destinado, apenas, a pessoas que possam ter um problema de saúde mental ligeiro, o principal trabalho é para as pessoas que têm problemas psicológicos, por ex. reações adaptativas, que podem ser depressivas, de ansiedade, a um acontecimento de vida qualquer. Este tipo de ajuda é preventivo.
(PR) O desenvolvimento económico e social do país tem em conta a saúde mental e a sua prevenção?
(FMR) Tem pouco. Há coisas que são feitas, mas tem pouco. Tem sido, ao longo destes anos, o parente pobre. Agora pode estar a tornar-se um parente remediado. O Plano de Recuperação e Resiliência prevê um investimento considerável nesta área da saúde mental, mas esse investimento, que é muito importante, vai ser canalizado quase exclusivamente para as pessoas que têm doença mental: Equipas comunitárias de saúde mental. Não quero retirar o positivo de se estar a fazer isso, porque estas pessoas são as mais vulneráveis das vulneráveis, mas continua-se a falhar na prevenção. A maior parte da população fica a descoberto para não chegar a este ponto.
Importa perceber como é que nós envelhecemos e chegamos às idades mais avançadas da nossa vida. Como é sabido, temos aumentado muito a nossa longevidade, em Portugal, mas continuamos muito atrás de outros países em matéria de anos de vida saudáveis após os 65 anos. Isso significa que há qualquer coisa que não está a funcionar: uma série de condições socioeconómicas e hábitos de vida saudáveis que falham antes. Se cuidarmos da nossa saúde ao longo da vida, seremos todos mais saudáveis. Estudos apontam uma relação entre hábitos de vida saudáveis e o menor aparecimento em situações de estados demenciais. Isto tem um impacto enorme nas questões económico-sociais: quais são os custos de as pessoas terem de deixar de trabalhar mais cedo ou não são produtivas no trabalho por não estarem nas melhores condições?
(PR) Qual o grupo etário que mais consequências sofreu neste período e como se podem mitigar os efeitos?
(FMR) Todos foram afetados, de alguma forma, pela pandemia. As vulnerabilidades não são tanto etárias, mas individuais, estando mais relacionadas com a situação em que a pessoa já estava quando surgiu a pandemia, ou seja, quais os fatores de vulnerabilidade e os fatores de proteção que tinha previamente. A pandemia não afetou de forma igual toda a gente e pessoas de situação socioeconómica mais desfavorecida foram mais afetadas, ou pessoas que tinham problemas psicológicos prévios ou doença mental.
Neste momento, muito do que tem sido produzido vai apontando particulares impactos nos jovens adultos e nos mais idosos, por razões bastante diferentes. Nos jovens, tarefas desenvolvimentistas, que dependem de autonomia e socialização têm vindo a ficar afetadas, um deles é o processo de autonomização. Por exemplo, houve muita gente que foi para o ensino superior e passou pelo primeiro ano sem ter estado na faculdade e privado com os colegas. Os idosos, por questões ligadas ao isolamento e por muitas vezes também estarem muito alterados por questões demenciais, acabam por ficar afetados pela perda de estímulo social.
É importante esclarecer que todos nós temos vulnerabilidades, e o problema é associarmos as fragilidades ao ser mais frágil. Hoje em dia, as pessoas estão mais capacitadas para identificar sinais de que algo não está bem, aceitarmos que não estamos bem, como algo natural e, se for o caso, solicitar ajuda, que não depende só das competências, mas também do momento da vida concreta. A criação da linha de aconselhamento psicológico do SNS demonstrou que as pessoas, quanto têm acesso aos serviços, procuram e recorrem ao apoio dos psicólogos.
(PR) Nas empresas há atenção à saúde mental?
(FMR) O contexto laboral continua a ser um contexto onde se faz muito pouco. Continua a ser um contexto onde acontecem demasiados disparates, erros de gestão e a nossa saúde mental está a ser afetada. Nas empresas, durante a pandemia, começaram a fazer uma coisa que não faziam antes, começaram a preocupar-se com os impactos na saúde mental. Tenho muitas dúvidas se é uma preocupação que se vai manter. Eu espero que seja para manter, mas tenho uma convicção, as empresas vão necessitar de ter muito mais o conhecimento da psicologia, sobre o comportamento das pessoas, da forma como pensam, como tomam decisões, como se motivam. Vão ter que ter isso cada vez mais em conta se querem sobreviver. Não é se quiserem ser mais rentáveis, é se quiserem sobreviver.
(PR) Há respostas acessíveis para as solicitações?
(FMR) É preciso relembrar que a maior parte da população portuguesa não tem meios para ir ao privado por isso é que nós falamos sempre do serviço nacional de saúde. Dos 24 mil psicólogos que existem em Portugal, apenas mil estão no Serviço Nacional de Saúde. Estou a chamar a atenção para isto porque nos compete enquanto Ordem, que tem competências delegadas pelo estado, fazer o melhor que soubermos
para que os portugueses tenham mais acesso aos serviços que os psicólogos prestam. O obstáculo ao acesso tem que ser resolvido.
(PR) A sociedade tirará alguma lição deste momento histórico para o futuro? Há mudanças que vão ficar?
(FMR) Tenho essas dúvidas, embora julgue que inevitavelmente as empresas ou apostam, e aqui não estamos a falar pura e simplesmente de saúde mental, estamos a falar do conhecimento da psicologia para os seus processos de negócio, inclusive para a forma com gerem as pessoas, ou não sobrevivem. Há muitas coisas que as pessoas toleravam antes da pandemia e que não sei se vão continuar a tolerar. Não sei se as pessoas vão continuar a tolerar práticas de gestão que não as respeitem, no sentido de serem assediadas, de não respeitarem minimamente direitos básicos que têm para poderem conciliar a sua vida pessoal com a sua vida profissional. E se formos para além disso, as pessoas provavelmente começarão
a ser menos tolerantes. A nova geração, e sobre isso já há alguns estudos, os millennials claramente têm uma forma de trabalhar diferente, que vai fazer com que os talentos desta geração fiquem nas empresas que sejam capazes de respeitar muito mais o ser pessoa, antes de mais. Se isso não acontecer, estes talentos vão para outros lados, não ficam, veem a mobilidade de outro modo. Antes de mais, há práticas de liderança que têm de mudar, nós temos um problema de práticas de liderança em Portugal que também é afetado pelos níveis de qualificação das nossas lideranças.
Os gestores gostam muito de se considerar racionais, gostam de ter aquela imagem de que as decisões são tomadas com base em informação económica, financeira, portanto isto é tudo muito racional. E podem continuar a pensar assim, mas estão enganados. A evidência científica demonstra que estão enganados. Tomamos a maior parte das nossas decisões com enviesamentos cognitivos, nós somos eminentemente animais que são muito emocionais, temos essa caraterística das emoções e as nossas tomadas de decisão são eminentemente emocionais.
O relatório que a Ordem dos Psicólogos Portugueses lançou o ano passado, que fez uma estimativa sobre quanto é que custava, à economia portuguesa, só ao setor privado, não ao setor financeiro, estes problemas de stress e de problemas psicológicos nos locais de trabalho, estamos a falar de 3,2 mil milhões de euros, em 2019, custos diretos, ao absentismo e presenteísmo, isso significa que são três pontes Vasco da Gama. Não é um número qualquer. Portanto, eu espero que o interesse que existe, neste momento em, por exemplo, pagar ou comparticipar consultas de psicologia se estenda a outras dimensões da prática das empresas porque isso é importante, dá um apoio a quem possa não ter recursos, é um benefício simultaneamente, se as pessoas ficarem melhores vão trabalhar melhor, e se trabalharem melhor será melhor para as empresas e para estas lideranças. Todos ganham.